Platão no Crítias e no Timeu, descreve uma imponente cidade, que atingiu o mais alto grau de civilização que poderia ser almejado pelos mortais, apenas os deuses estariam acima da civilização atlante. Temos aqui a utopia, como outras que viriam mais tarde na tradição filosófica, a Nova Atlântida de Bacon, A Cidade do Sol de Campanella ou a Utopia de Thomas More (cujo título da obra se tornou designação para este gênero filosófico), entre diversas outras.
Mas, com a utopia, nasceu a distopia. Os Atlantes acabam por se corromper, e sua bela civilização é afundada no mar pelos deuses. Parece então que estamos fadados a não alcançar a utopia, uma hora ela se degenera em distopia.
Se podemos tirar alguma lição contemporânea desta história de Platão, é o alerta contra o desejo em se alcançar uma sociedade perfeita, em que chegaríamos ao “fim da história” e viveríamos em um eterno presente, uma felicidade eterna. Algo como um paraíso terrestre!
O desaparecimento de quaisquer contradições, da própria história, e consequentemente de novas contradições a serem resolvidas, é impossível. A história não tem fim!
Neste caso, devemos abandonar um horizonte utópico e nos contentar apenas com nossa sociedade atual? Não, e afirmo novamente NÃO! Temos necessidade da utopia. Sem utopia, caímos no niilismo, precisamos da utopia. Entretanto não precisamos de uma utopia fechada, que fatalmente nos levará a alguma autocracia. Precisamos de uma utopia aberta, que vai se construindo dia a dia, ou seja, a democracia.
A democracia não é um horizonte fechado, é um horizonte a ser construído, em que a cada passo que avançamos, somos obrigados a rever conceitos, práticas e políticas; e incluir novas demandas a serem alcançadas. É um horizonte sem fim, mas a utopia não é o ponto de chegada, é a própria caminhada!
A democracia nasce na Grécia antiga, lá apenas homens livres empreendem a caminhada, retomada após a independência dos EUA, e as revoluções inglesas e francesa, são os burgueses que iniciam a caminhada para o horizonte. Com o tempo, outros vão chegando, não sem lutas e dificuldades, mas a democracia, como o cérebro humano, possui plasticidade, capacidade de aprender e se adaptar, e por isso é o melhor regime político que podemos construir.
Negros, camponeses, proletários, mulheres, povos originários e homo afetivos. A cada passo que damos na construção de nossa utopia, incluímos aqueles que antes se encontravam excluídos, incorporamos na estrada principal aqueles que antes estavam marginalizados. É um processo que sempre demanda luta, demanda redescrições de nossa própria história, a fim de incluir os antes excluídos!
O processo nem sempre é perfeito, nem sempre é totalmente acabado, às vezes damos um ou dois passos para trás, outras vezes encontramos um muro no caminho, então, é necessário fazer um desvio, outras vezes, derrubar o muro. Por vezes desaceleramos, tomamos fôlego! Mas nunca, nunca mesmo, paramos de seguir em frente.
Será a democracia capaz de inserir, na corrente principal, os animais? Talvez, um dia máquinas conscientes? É provável, pois a democracia é isso, uma utopia em construção, uma caminhada cada vez com mais liberdade e reconhecimento, ao qual a cada dia novos caminhantes vão se incorporando. Não é fácil! Mas é a utopia possível, aquela que está sempre a se aperfeiçoar.
No meu entender, está é a grande lição que podemos tirar da utópica Atlântida de Platão: quando pararmos de caminhar, virá a decadência e a distopia, pois o caminhar é a utopia. A utopia nunca estará acabada, mas nunca deixaremos de caminhar em sua direção.
-----------------------------------------------------------------
Pós-escrito: “o fim da história” é um conceito do cientista político Francis Fukuyama; já o conceito de “redescrição” é do filósofo Richard Rorty
____________________________________________________
Texto publicado originalmente no boletim CETRANS Interativo – CI@, do Centro de Educação Transdisciplinar [Verão de 2022]